segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Autoconhecimento - Sobre Vícios e Virtudes




Antes de iniciarmos propriamente, dois pedidos: não deixe que a preguiça o impeça de ler o texto por inteiro, isso já faz parte da dinâmica do que será proposto. Faça a leitura quando dispuser de tempo para uma autoanálise, a pressa será, aqui, uma adversária.

A partir de agora, vamos fazer uma viagem, talvez das mais difíceis que já fizemos. Para onde vamos, então? Para dentro de nós mesmos, conhecer um pouco mais o abismo que somos nós, em uma viagem que deve ser feita todos os dias de nossa vida. O conhecimento próprio tem em vista saber como somos para saber como devemos ser, exige especialmente que nos comparemos com o que Deus quer e espera de nós.

Para a nossa tarefa, precisamos de alguns parâmetros que nos guiem nesta viagem, sinais que nos indiquem o caminho. Podemos nos examinar, pois, à luz dos sete vícios capitais e das sete virtudes que usamos para combatê-los. As virtudes são de grande ajuda na busca da vocação universal dos cristãos: a santidade.

 Antes de começarmos, entretanto, atentemos a algumas informações importantes:

1.   Nesta viagem, analisemo-nos sob o olhar de Deus: como nos diz o profeta Samuel, “o homem vê o rosto, a aparência, mas Deus vê o coração” (1 Sm 16, 7). O olhar dEle não disfarça ou esconde o que precisa ser mostrado, traz à superfície não só os frutos, bons ou maus, da nossa vida, mas também a raiz, as motivações (ou causas) às vezes desconhecidas do nosso agir e do nosso pensar.
2.   Evitemos o subjetivismo: quando sofremos desse problema, negamos que exista a Lei de Deus (o amor a Ele, ao próximo e a nós mesmos) como regra maior pela qual medir o valor dos nossos atos e, consequentemente, afirmamos a supremacia absoluta da própria consciência como norma de conduta; assim, somos corrompidos pelo nosso egoísmo e pelas ideias da moda. No fim das contas, o subjetivista diz: “Eu me basto, sei o que é melhor pra mim, não preciso de ninguém para me dizer”.
Os sete vícios capitais (ou pecados capitais, ou ainda doenças espirituais) são soberba, ira, inveja, luxúria, gula, avareza e preguiça. São chamados capitais porque são a raiz e a fonte de todas as falhas de comportamento, geram outros defeitos e pecados. Vamos tratar brevemente sobre cada um. Durante o percurso, devemos nos examinar e perceber quais nos afetam mais, pois é a estes que precisamos combater por primeiro. Combater como? Com as virtudes que serão propostas logo abaixo de cada vício, força de vontade, perseverança e, acima, de tudo, com a graça de Deus; afinal, como nos ensina uma velha regra teológica: “Deus não nega a sua graça a quem faz o que pode”. Boa viagem!

·      A soberba é a procura desordenada da própria glória, um amor-próprio doentio que nos coloca sempre em primeiro lugar, em destaque. Se pudesse, o soberbo rezaria “seja feita a minha vontade assim na terra como no céu”. A soberba gera o egoísmo, a vaidade, o orgulho, a ambição desmedida, entre outros pecados.
- Humildade: é o reconhecimento da nossa pequenez, da verdade sobre nós mesmos, sabendo que tudo é dom de Deus. Devemos recorrer a Nossa Senhora, que é exemplo de humildade, para pedir essa virtude.

·      A avareza consiste no apego e no desejo desmedido dos bens temporais, do que é material e passageiro, como o dinheiro. A avareza pode originar, entre outros pecados, o roubo, a mesquinhez, a injustiça com as outras pessoas e a indiferença para com os mais pobres.

- Generosidade: é o despojamento quanto aos bens materiais, compartilhando-os com aqueles que necessitam. Também é a atitude daquele que coloca a própria vida a serviço do próximo. Deus é generoso com seus filhos, portanto, todo cristão deve ser generoso com seu próximo.

·      A luxúria, ou impureza, é o exercício desordenado e incorreto que o ser humano faz da sexualidade, que é dom de Deus, devendo ser manifestada dentro da linguagem do verdadeiro amor. Trata-se da atitude de quem coloca sua felicidade nos prazeres ligados à sexualidade, daquele que busca desenfreada e egoisticamente o prazer, tratando o outro como objeto. A luxúria pode ter como consequências: pecados evidentes contra a castidade, atos desonestos, falsidade, perda da fé e desespero da misericórdia divina.
- Castidade: é o respeito pelo nosso corpo e pelo corpo do próximo, reconhecendo toda a dignidade do ser humano, imagem e semelhança de Deus. Gera o domínio de si, para a livre, gratuita e total doação ao outro. Em suma, é uma escola de amor.

·      A ira é um estado emocional desordenado, de raiva excessiva, que retira a paz de nós mesmos e leva-nos a uma oposição despropositada às pessoas, situações etc. Como efeitos da ira, podemos citar homicídios, desavenças, injúrias e ódio.
- Mansidão: consiste na calma, na tranquilidade, no equilíbrio emocional. O constante contato com Deus através da oração contribui diretamente para alcançarmos essa virtude, pois nos ajuda a refletir, sob a ótica de Deus, sobre nossos pensamentos e atitudes.

·      A gula é a atração desordenada pela comida ou bebida. O guloso costuma colocar o prazer da comida ou da bebida como fonte maior de felicidade, ignora que o alimento é dom de Deus, pelo qual devemos dar graças. Portanto, é possível ser guloso sem comer muito; trata-se, na verdade, da atitude que temos diante do alimento. Popularmente, consiste também no “comer com os olhos”, excessivamente. Além de prejudicar a saúde (o que atenta contra o 5º mandamento: “não matar”), traz como consequência a perda de forças para lutar contra as demais doenças espirituais, injustiça, egoísmo etc.
- Temperança: trata-se da moderação dos prazeres, perceber a medida certa, não passar dos limites. Não há dúvidas de que os prazeres são dom de Deus, são, para nós, uma prefiguração dos prazeres celestes e nos fazem querer estar com Deus; contudo, quando em excesso, prejudica-nos, pois acabamos trocando o Criador pelas criaturas.

·      A inveja é a tristeza causada pelo fato de haver alguém feliz, alcançando seus objetivos, o sofrimento pela melhor sorte dos outros, ou seja, é pensar que o outro nunca poderá estar em situação melhor do que a nossa. Produz o ódio, a calúnia, o ressentimento, entre outros males.
- Caridade: é a virtude pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus. A caridade nos ajuda a querer o bem do próximo, a desejar sua felicidade e a se alegrar junto com ele.

·      Por fim, temos a preguiça ou acídia, que consiste em fugir das obrigações, dos compromissos e dos trabalhos pelo esforço que estes implicam. É a atitude daquele que se conforma com a mediocridade, que se acomoda, até mesmo na busca pela santidade. Causa o desleixo na vida de oração, faltas injustificadas à Santa Missa dominical e em dias de preceito, fuga das obrigações familiares e profissionais (estudar também é uma profissão), entre outros defeitos.
- Diligência: trata-se de cumprir nossas obrigações e compromissos com todo amor, como se tudo estivesse sendo feito para Deus. Todos os nossos esforços diários podem ser oferecidos a Ele, na esperança de que sejam uma oferta agradável.

Chegamos ao fim da nossa viagem. Como foi a experiência? Certamente difícil e incômoda, afinal encaramos nossos próprios defeitos e pecados. Felizmente, temos ao nosso lado um Deus infinitamente misericordioso, que nos ama mais do que podemos imaginar ou compreender; temos os Sacramentos, em especial a Eucaristia e a Confissão; temos Maria, nossa mãe e intercessora; e todos os anjos e santos ao nosso lado.

 Após aprofundarmos o conhecimento sobre nós mesmos, é necessário buscarmos corrigir os problemas verificados, ou seja, buscar propósitos concretos e realistas, sem medo ou disfarces, mesmo que nos custe alguns sacrifícios e renúncias. São João Bosco dizia que a vida é um presente de Deus para nós, e o que fazemos dela é o presente que damos a Ele. Que tal começarmos por uma boa confissão, uma visita ao Santíssimo Sacramento, para alguns minutos de oração, e a participação na Santa Missa?

Deus nos abençoe e Maria nos proteja!

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Caminho de conversão





Disponibilizo um excelente texto do padre e teólogo Réginald Garrigou-Lagrange, O. P., sobre a vida espiritual. O excerto foi retirado do livro 'As Três Vias e as Três Conversões' (4ª Edição. Editora Permanência. P. 46-48.), em que se trata sobre as três vias ou idades da vida espiritual, que tem seu cume na via unitiva, a via dos perfeitos, daqueles que gozam do início da vida eterna ainda aqui na Terra, como Santa Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena, e sobre as três conversões necessárias para chegar a cada uma. Desnecessário explicar que tal assunto é fundamental na vida de todo cristão, como um processo de análise da caminhada e de busca pela perfeita Caridade.

Em breve e rasa explanação, a primeira conversão é aquela pela qual a alma passa do estado de dissipação ou de indiferença ao estado de graça, levando à via purgativa, à luta contra os pecados, vícios e más inclinações, os quais, consciente ou inconscientemente, afastam do caminho de Deus e dEle mesmo. Já na segunda conversão, a alma passa do estado imperfeito à profunda resolução de daí em diante tender real e generosamente para a perfeição cristã, entrando na via iluminativa, na vida virtuosa, porém ainda necessitada de uma terceira conversão, uma verdadeira transformação da alma.

Tal doutrina não pode significar para nós apenas um conhecimento livresco e teórico, mas deve consistir em busca de uma vida inteira. Ouçamos, pois, a Cristo, no Sermão da Montanha:

“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. (Mt 5, 43-48)”

Deus os abençoe e Maria os proteja!

"Santa Catarina mostra em seu Diálogo (caps. 60 e 63), que aquilo que se passou com os Apóstolos, nossos modelos formados diretamente por Nosso Senhor, de certo modo deve reproduzir-se também em nós. Antes, é preciso que se diga que se os Apóstolos tiveram necessidade de uma segunda conversão, com muito maior razão dela precisamos nós. A santa insiste particularmente sobre as imperfeições que tornam necessária esta segunda conversão, especialmente sobre o amor próprio. Nas almas imperfeitas, ele susbsiste em graus diversos, apesar do estado de graça, e é a fonte de um grande número de pecados veniais, de defeitos habituais,  que se tornam como os traços do caráter das pessoas e fazem necessária uma verdadeira purificação da alma, mesmo naqueles que, de certo modo,  já estiveram no Tabor ou que frequentemente participam do banquete eucarístico, como os Apóstolos na Ceia.

No capítulo 60 de seu Diálogo,  ela nos fala deste amor próprio, descrevendo o amor mercenário dos imperfeitos que, sem perceberem,  servem a Deus por interesse, pelo apego às consolações, quer temporais quer espirituais, e que ao serem delas privados choram lágrimas de ternura por eles mesmos.

Trata-se de mistura bem estranha mas, de fato, muito frequente em nós: a de um amor a Deus, que tem sua sinceridade, com um amor desordenado de nós mesmos. Não se pode negar que tal pessoa ama a Deus, com um amor de estima, mais do que a si mesma, sem o que não estaria em estado de graça e teria perdido a caridade, mas ela se ama a si mesma ainda de um modo desordenado.

(...)

'Entre aqueles que se tornaram meus servos de confiança, há os que me servem com fé, sem temor servil. Não é apenas o temor do castigo, é o amor que os liga ao meu serviço [como Pedro antes da Paixão]. Mas este amor não deixa de ser imperfeito, porque eles buscam a si mesmos [pelo menos em boa parte], é sua própria utilidade, sua própria satisfação, ou o prazer que encontram em Mim. A mesma imperfeição também se encontra no amor que eles tem ao próximo. Sabes o que demonstra a imperfeição deste amor? Já que são privados das consolações que encontravam em mim, este amor não lhes é suficiente e não pode mais sobreviver . Este amor definha e frequentemente vai esfriando cada vez mais, quando para exercitar as almas na virtude e arrancá-las da imperfeição, eu lhes retiro estas consolações espirituais e lhes envio lutas e contrariedades. Mas ajo assim somente para levá-las à perfeição, para ensiná-las a melhor se conhecer, para que tomem consciência de que não são nada e que por elas mesmas não possuem nenhuma graça. A adversidade deve levá-las a buscar refúgio em mim, a me reconhecer como seu benfeitor, a se apegarem a mim somente por uma verdadeira humildade...'

(...)

É importante, pois, superar o amor mercenário que às vezes continua subsistindo, ainda que ignorado. Neste mesmo capítulo 60 está dito:

'Era com este amor imperfeito que São Pedro amava o bom e doce Jesus, meu filho único, quando provava tão deliciosamente a doçura de sua intimidade [no Tabor]. Mas, apenas veio o tempo da tribulação, toda a sua coragem o abandonou. Não somente faltaram-lhe forças para sofrer com Ele, como, à primeira ameaça, o mais baixo dos temores venceu sua fidelidade e Pedro renegou a Cristo jurando nunca tê-lo conhecido.'

Santa Catarina mostra que a alma imperfeita, que ama o Senhor com um amor ainda mercenário, deve imitar o que fez Pedro depois da negação. Não é raro que a Providência, a qualquer momento, também nos permita incidir em alguma falta bem visível, para nos humilhar e obrigar-nos a entrar em nós mesmos. 

(...)

Catarina observa que a alma que se move apenas por um amor mercenário corre inúmeros perigos. 'São as almas, diz ela, que querem ir ao Pai sem passar por Jesus Crucificado e que se escandalizam da cruz, que lhes é dada para salvá-las'. (Cap. 75)" 


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Quaresma: Tempo de Conversão




O termo quaresma origina-se do latim “Quadragésima die Christus pro nobis tradétur” (Daqui a quarenta dias Cristo será entregue por nós), abreviação de quadragésima. Relembra-nos também os quarenta dias que Jesus passou no deserto orando e jejuando (Mt 4, 1-2). Trata-se de um tempo litúrgico que tem início na quarta-feira de cinzas e se estende até a quinta-feira santa (missa do lava-pés); entretanto, as penitências continuam até domingo. Sua cor litúrgica é o roxo, significando luto e penitência, e são suprimidos os cantos de alegria: “Glória” (exceção para eventuais solenidades) e o “Aleluia”, os quais só serão cantados novamente na missa da Vigília Pascal.

 É um período de forte apelo à conversão, palavra oriunda do termo metanoia, que, por sua vez, tem raiz no grego e significa mudança de rumo, de direção, transformação espiritual. De fato, todos os dias somos chamados à conversão, a fazer um exame de consciência (reflexão) sobre nossa vida e mudar aquilo que necessita ser mudado (é o que chamamos também de combate espiritual), retornando ao caminho de Deus; contudo, a quaresma é o tempo especial e favorável para tal atitude, em que a Igreja se prepara visando a celebrar menos indignamente a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quaresma é também tempo de penitência. “A palavra penitência tem dois significados. Em primeiro lugar, temos a virtude da penitência, a virtude sobrenatural que nos leva a detestar os nossos pecados por um motivo que a fé nos dá a conhecer, e ao propósito consequente de não ofender mais a Deus e de desagravá-lo por isso.” [1] O outro significado refere-se ao Sacramento da Penitência (Reconciliação ou Confissão), ao qual devemos recorrer, no mínimo uma vez por ano, para sermos perdoados de nossos pecados e nos apresentarmos à comunhão eucarística.

“Há três coisas, meus irmãos, três coisas que mantém a fé, dão firmeza à devoção e perseverança à virtude. São elas a oração, o jejum e a misericórdia.” [2] Nesse trecho, São Pedro Crisólogo nos exorta a vivenciar três modos de penitência interior para a quaresma: o jejum, a oração e a caridade, “que exprimem a conversão com relação a si mesmo, a Deus e aos outros” [3]. Todos os dias quaresmais, exceto os domingos, são dias de penitência.

“A oração define-se como a elevação da mente e do coração a Deus.” [1] Oportunidade de voltarmo-nos para Ele cheios de gratidão e pedirmos pelos familiares e amigos, mas também pelos inimigos, pelos que sofrem com a injustiça social e com a falta de amor. Para nós, católicos, não há oração mais sublime do que a Santa Missa; portanto, é um bom momento para aumentar a frequência, por exemplo, ir à missa outro(s) dia(s) além dos domingos e demais dias de preceito, e a fidelidade (esforçar-se para não chegar atrasado nem sair mais cedo, procurar concentrar-se no que está sendo dito, aprender mais sobre a missa, entre outras formas). Ademais, é aconselhável a adoração ao Santíssimo Sacramento, a oração do Santo Terço e a leitura meditada da Sagrada Escritura com mais frequência. Lembre-se de que a oração pede também o hábito e a perseverança.

O jejum é uma disciplina mais relacionada à alimentação, contribui para adquirirmos o domínio sobre nossos instintos e a liberdade de coração. De fato, só quem domina a si mesmo pode-se dizer livre, quem não é escravo e refém de seus impulsos e desejos, mas sabe controlá-los. “A primeira e indispensável penitência quaresmal é no tocante à comida e à bebida: sem renúncia a algum alimento não há prática quaresmal! Cada um deve escolher uma pequena prática penitencial para este tempo” [5]. O jejum é obrigatório, no mínimo, na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira da Paixão para pessoas entre 18 e 59 anos (inclusive), os maiores de 14 anos estão obrigados já a fazer algum tipo de abstinência (refrigerante ou doce, por exemplo). De fato, todas as sextas-feiras do ano, conforme prescrição do Código de Direito Canônico, são dias de penitência obrigatórios, em que o fiel deve abster-se de carne ou outro alimento indicado pela sua Conferência Episcopal; no Brasil, a CNBB deixa a cargo do fiel a escolha do alimento. O jejum nos ensina que precisamos especialmente de Deus, muito além de qualquer coisa ou pessoa, pois Ele é que nos sustenta.

“A caridade é a virtude teologal (divina) pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas (...) e a nosso próximo como a nós mesmos” [4]. Como sugestão, podemos praticar a caridade seguindo as obras de misericórdia corporais e espirituais. As corporais são 1. Visitar e cuidar dos enfermos; 2. Dar de comer a quem tem fome; 3. Dar de beber a quem tem sede; 4. Dar pousada aos peregrinos; 5. Vestir os nus; 6. Redimir os cativos; 7. Enterrar os mortos. Por sua vez, as obras de misericórdia espirituais são 1. Ensinar a quem não sabe; 2. Dar bom conselho a quem dele necessita; 3. Corrigir a quem erra; 4. Perdoar as injúrias; 5. Consolar o triste; 6. Sofrer com paciência os defeitos do próximo; 7. Rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. “O que a chuva é para a terra, é a misericórdia (caridade) para o jejum. Por mais que cultive o coração, purifique o corpo, extirpe os maus costumes e semeie as virtudes, o que jejua não colherá frutos se não abrir as torrentes da misericórdia” [2]. Normalmente, a prática da caridade é resumida na esmola; todavia, nem só com dinheiro se pode ajudar o próximo, mas também com outras formas de ajuda material e mesmo com uma simples oração, deve-se buscar o correto discernimento de como ajudar, conforme a situação concreta e as possibilidades de cada um. Tenhamos o especial cuidado de não submetermos as pessoas ao nosso julgamento humano repleto de preconceitos.

Por fim, a quaresma é tempo de misericórdia, ou seja, tempo de aproximar as nossas misérias do coração de Deus, para que assim elas sejam purificadas e vencidas. Além de receber, devemos também ofertar a nossa misericórdia aos irmãos, buscando a reconciliação com o próximo.


                   Leia aqui a mensagem do Papa Bento XVI para a quaresma de 2012.

A todos, meus votos de uma Santa Quaresma!

[1] Leo J. Trese. A fé explicada. Editora Quadrante.
[2] São Pedro Crisólogo, bispo do século IV.
[3] Catecismo da Igreja Católica, nº 1434.
[4] Catecismo da Igreja Católica, nº 1822.
[5] Dom Henrique Soares da Costa. Quaresma: um caminho a ser feito em direção a Cristo.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

A relação entre estudo teológico e vida interior




              Eis um belo texto, que nos inspira a buscar o estudo, a oração e uma vida coerente! Deus vos abençoe e Maria vos proteja!

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Costuma-se separar demais o estudo da vida interior, e não se observa o bastante a belíssima gradação que se encontra no cap. 48 da Regra de São Bento: “lectio, cogitatio, studium, meditatio, oratio, contemplatio”. Santo Tomás, que recebeu sua primeira formação dos beneditinos, conservou esta gradação admirável na sua Suma Teológica, no lugar onde trata da vida contemplativa (IIa. IIae. q. 180, a. 3).

Ora, dessa excessiva separação entre estudo e oração, seguem-se muitos defeitos: os sacrifícios e as dificuldades que não raro se encontram nos estudos, não são mais considerados como uma penitência salutar, nem são adequadamente ordenados a Deus; assim, por vezes sobrevêm fadigas e fastio, sem que delas se tire nenhum fruto religioso.

Por outro lado, por vezes se encontra no estudo o deleitamento natural, que poderia ser ordenado a Deus, em espírito de fé viva, mas que não raro permanece puramente natural, sem qualquer fruto para a alma religiosa.

Santo Tomás fala desses dois desvios na IIa IIae, q. 166, onde trata da virtude da estudiosidade ou da aplicação aos estudos, que deve ser governada pela caridade, contra a curiosidade desordenada e contra a preguiça, a fim de que se estude o que convém, como convém, quando e onde convém e, sobretudo, para que se estude com o espírito e o fim mais apropriado para melhor conhecer o próprio Deus e para a salvação das almas.
   
Mas, para evitar os defeitos acima, opostos um ao outro, é bom lembrar-se de como nosso estudo intelectual pode ser santificado, considerando, em primeiro lugar, o que recebe a vida anterior do estudo retamente ordenado; em seguida, e por outro lado, o que o estudo da Sagrada Teologia pode cada vez mais receber da vida interior. Na união destas duas atividades de nossa vida, verifica-se o princípio: "Causae ad invicem sunt causae, sed in diverso genere"; há entre elas uma relação de mútua causalidade e de prioridade verdadeiramente admirável.

O que a vida interior deve ao estudo

A vida interior, pelo estudo da teologia, é preservada sobretudo de dois graves defeitos: subjetivismo, na piedade, e particularismo.
  
O subjetivismo, no que toca a piedade, hoje comumente chamado de "sentimentalismo", é uma certa afetação de amor, desprovida do verdadeiro e profundo amor de Deus e das almas. Este defeito provém do fato de prevalecer na oração a inclinação natural da nossa sensibilidade, conforme a índole de cada um. Prevalece alguma emoção da sensibilidade que, por vezes, é expressa com algum lirismo, mas que carece do sólido fundamento da verdade. (...)
  
Ao contrário, nossa vida interior deve estar fundada na verdade divina. Isto, de certo, já ocorre pela própria fé infusa, fundada na autoridade de Deus que a revela. Mas o estudo bem ordenado em muito ajuda a bem conhecer em que propriamente consistem as verdades da fé, independentemente de nossas disposição subjetivas. O estudo ajuda sobretudo a formar uma reta noção sobre as perfeições de Deus, sobre Sua bondade, misericórdia, amor, justiça e ainda sobre as virtudes infusas, sobre a verdadeira humildade, religião e caridade, não permitindo a mistura de emoções não fundadas na verdade. Por essa razão, Santa Teresa, como a própria afirma em seu Livro da Vida, capítulo 13, muito recebeu das conferências dos bons teólogos, para que não se desviasse da senda da verdade nas enormes dificuldades.
    
Nosso estudo bem orientado liberta nossa vida interior, não apenas do subjetivismo, mas também do particularismo, que provém do influxo excessivo de certas idéias, particulares de algum tempo ou região, que após uns trinta anos já se mostrarão obsoletas. Em tempos passados, prevaleceram certas idéias ou filosofias que hoje já não agradam; assim ocorre a cada geração; surgem sucessivas opiniões e admirações que passam com a figura do mundo, enquanto permanece a palavra de Deus, da qual o justo deve viver.
  
Assim, o estudo bem ordenado verdadeiramente conserva, na vida interior, a devida objetividade, sobre todos os desvios da sensibilidade, e a universalidade, fundada naquilo que sempre e por toda a parte a Igreja ensinou. E assim, cada vez mais percebemos que as verdades mais altasmais profundas e mais vitais nada mais são que as verdades elementares do Catolicismo, desde que profundamente examinadas e tornadas objeto de quotidiana meditação e contemplação. (...)

É coisa de máxima importância viver profundamente destas verdades, sem nenhum desvio do subjetivismo, sentimentalismo ou particularismo de qualquer tempo ou região. Nisso, também, nossa vida interior tem muito a receber do bom estudo; e este é o ótimo fruto da penitência que se encontra nas dificuldades do estudo, e fruto muito mais precioso do que o deleitamento natural, que pode existir no labor intelectual não suficientemente santificado ou ordenado a Deus. (...)
  
A vida interior, portanto, é, pelo estudo, preservada de muitos desvios, para que permaneça objetiva, e verdadeiramente fundada na doutrina que sempre e em toda parte se transmitiu. Mas há, por outro lado, um influxo da vida interior no estudo da Sacra Teologia.
  
O que o estudo da teologia deve à vida interior
  
Não raro, este estudo fica sem vida, quer na parte positiva, quer na especulativa e abstrata. Muitas vezes falta nele o espírito alto e o influxo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e dos dons da inteligência e da sabedoria. Por conseqüência, o saber teológico muitas vezes não é aquela "ciência saboreada" da qual fala Santo Tomás na primeira questão da Suma Teológica. 
   
Não raro nossa mente estaciona nas próprias fórmulas dogmáticas, na sua análise conceitual, nas conclusões deduzidas, e não costuma, por essas fórmulas, penetrar no mistério da fé, para saboreá-lo espiritualmente e para dele viver.
  
Convém dizer isto porque muitos santos que não puderam fazer tantos estudos como nós, penetraram muito mais profundamente nestes mistérios da fé. Assim, São Francisco de Assis, Santa Catarina de Sena, São Bento-José Labré e muitos outros que certamente não fizeram de modo abstrato e especulativo a análise conceitual dos dogmas da Encarnação, da Redenção, da Eucaristia, nem deduziram as conclusões teológicas que conhecemos e que, no entanto, mais profundamente e com santo realismo tiraram destes mistérios vida abundante.
  
(...)
        
Assim, se crescesse diariamente nossa vida interior, exerceria uma influência muito fecunda em nosso estudo, que se tornaria mais vívido a cada dia. 
  
O estudo e a vida de oração, pois, são causa um do outro em bela harmonia.

Qual é o fruto deste influxo mútuo?
      
(...)
                
Se, verdadeiramente, em espírito de fé, oração e penitência, nossa mente se dedicasse ao estudo da teologia, então a nós se aplicariam estas palavras de Santo Tomás (IIa IIae 188, 6): "A doutrina e a pregação devem ser derivadas da plenitude da contemplação", até certo ponto, como a pregação dos Apóstolos depois de Pentecostes.
   
A Teologia, assim compreendida, é de grande importância para o ministério das almas. Ela própria forma profundamente o espírito para julgar sabiamente, conforme a mente de Cristo e da Igreja; para exortar as almas à perfeição segundo princípios verdadeiros, p. ex., para mostrar que, a par do preceito supremo: "Ama teu Deus de todo o teu coração..." todos cristãos devem tender à perfeição da caridade, cada qual conforme a medida de sua condição.
  
E não podemos chegar a esta plena perfeição da vida cristã sem vivermos profundamente dos mistérios da Encarnação redentora e da Eucaristia, sem penetrar neles e sem os saborear pela fé ilustrada pelos dons de inteligência e sabedoria. Para isto, é de grande ajuda, com efeito, o estudo da teologia, desde que retamente ordenada, não à nossa satisfação, mas ao maior conhecimento de Deus e à salvação das almas.
  
Assim, mais e mais poderão se verificar em nós aquelas belas palavras do Concílio Vaticano (Denz. 1796), que encerram como que uma definição da Sacra Teologia: "A razão ilustrada pela fé, quando busca cuidadosa, pia e sobriamente, alcança, por dom de Deus, alguma inteligência, e muito frutuosa, dos mistérios, ora por analogia do que naturalmente conhece, ora pela conexão dos mistérios mesmos entre si e com o fim último do homem...".
  
O estudo da sagrada teologia, por vezes difícil, árduo, mas frutuoso, a tal ponto dispõe nossas mentes à luz da contemplação e da vida, que é como que uma introdução e um certo começo da vida eterna.
  
(Extr. de "De Deo Uno", Desclée de Brouwer et Cie, Paris pp. 30-34. Tradução: PERMANÊNCIA)



quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O seguimento de Cristo



O cristão deve constantemente refletir se realmente está fazendo da sua vida um “seguimento de Cristo”, se está aberto a ouvir a Sua vontade e, dessa forma, busca realizá-la. Entretanto, continuando esse pensamento inicial, o que é ser Cristão? Bem, para essa questão pode haver respostas diferentes, adoto aqui a de minha predileção: ser cristão é conformar-se a Cristo, e conformar significa tomar a mesma forma; assim, ser cristão é buscar tomar a forma de Jesus em todas as situações. Sem dúvidas um grande desafio!

Pode-se tomar a forma de Cristo em situações simples e agradáveis do cotidiano, como na hora do almoço, vivendo a fraternidade em família; em uma conversa alegre entre amigos; em uma festa para celebrar o matrimônio de um casal querido, entre outras situações. Deve-se, porém, estar disposto a também tomar a forma de Cristo na cruz, entregando a Ele as próprias dificuldades, indo ao encontro do irmão que precisa de cuidado e atenção ou gastando e doando a vida por aqueles que dela necessitam. Dizia São João Bosco que nossa vida é um presente de Deus e o que fazemos dela é o nosso presente a Ele.

O seguimento de Cristo é descrito na doutrina tradicional sobre a vida interior e a experiência mística (vivência espiritual concreta), que aponta três etapas ou vias, as quais não são diversas, mas partes de um mesmo caminho, e o caminhar lembra conversão, visto que diariamente se percorre um itinerário de mudança e aperfeiçoamento, buscando conformar-se cada vez mais ao Mestre.

A primeira via de que se fala é a via purgativa, “se for bem entendida, a observância dos mandamentos é sinônimo da via purgativa: de fato significa vencer o pecado, o mal moral nas suas diversas formas; e isto leva a uma progressiva purificação interior” [1]. Trata-se da fase inicial, em que é necessário mais atentamente vigiar a si mesmo, haja vista a maior tendência às paixões, ao egoísmo e ao “hábito de pecado”.

Simultaneamente, com essa purificação, descobrem-se os valores mais elevados e passa-se então à via iluminativa. “Com efeito, os valores são luzes que iluminam a existência e, à medida que o homem se esmera a si próprio, brilham cada vez mais intensamente no horizonte da sua vida. Por isso, juntamente com a observância dos mandamentos – observância que tem primariamente um significado purificador – vão-se desenvolvendo no homem as virtudes” [1]. Desse modo, o indivíduo é guiado pelas virtudes que aprende e o seguimento torna-se mais natural, sem parecer grande esforço. “Com o passar do tempo, se o homem seguir com perseverança o Mestre que é Cristo, sentirá cada vez menos dentro de si o peso da luta contra o pecado e passará a gozar sempre mais da luz divina que penetra toda a criação” [1].

Por fim, surge a via unitiva, em que a alma experimenta uma especial união com Deus, “o homem encontra Deus em tudo, está em contato com ele em tudo e através de tudo. As coisas criadas deixam de ser um perigo para ele, como o eram sobretudo quando percorria a via purgativa; as coisas, e particularmente as pessoas, não só readquirem a luz própria que lhes conferiu o criador, mas de certo modo ‘tornam acessível’ – se assim se pode dizer – o próprio Deus no modo como Ele quis revelar-se ao homem, ou seja, como Pai, Redentor e Esposo” [1]. Realiza-se aquilo sobre o que o apóstolo Paulo falava: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” [2]. Certamente, não é fácil chegar a tal união; contudo, deve-se procurá-la sempre, principalmente através da vida de oração, da busca dos Sacramentos, em especial a Eucaristia e a Reconciliação (confissão), e de uma vivência coerente e autêntica em busca da Verdade, anunciando a boa nova de Cristo com a própria vida.

O Catecismo da Igreja Católica ensina, logo no início, que “o desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar” [3]. O que faz o ser humano superior a toda a criação não é tanto a sua razão, mas especialmente o fato de que ele é chamado para Deus, “o aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus” [4].

O seguimento de Cristo tem também uma dimensão existencial, implica certos compromissos e responsabilidades para quem quer segui-lo, aos quais se deve estar sempre disposto a abraçar, mesmo que apareçam calvários e cruzes, pois, como diz Santo Agostinho, “fizeste-nos para Vós e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós” [5]. O coração de cada ser humano está inquieto e só em Deus encontrará a plena realização da própria humanidade.


[1] João Paulo II. Memória e Identidade. Editora Objetiva;
[2] Gl 2, 20;
[3] Catecismo da Igreja Católica, 27. Editora Loyola;
[4] Constituição Pastoral Gaudim et Spes, sobre a Igreja no mundo atual;
[5] Santo Agostinho. Confissões I, 1,1. Editora Paulus.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Cantos de Amor à Mãe Igreja



Eis um belo texto do Cardeal teólogo Henri de Lubac. Detalhe importante: quando escreveu o livro Meditation sur l’Eglise” (Meditações sobre a Igreja, numa tradução livre para o português), na década de 1950, o então Padre Henri de Lubac estava sob voto de silêncio, o qual acolheu em total obediência e amor à Mãe Igreja, acusado injustamente de liberalismo teológico por alguns membros da própria Igreja (somente conhecendo o clima vivido naquela época pode-se compreender o fato). Mais tarde, compreendeu-se o equívoco e o Padre Henri de Lubac foi um dos principais consultores teológicos do Concílio Vaticano II, posteriormente feito Cardeal pelo Beato Papa João Paulo II. Sigamos o exemplo desse grande homem, no amor e na obediência à Santa Madre Igreja.
O texto foi retirado do site www.domhenrique.com.br , o qual recomendo a todos como excelente fonte de leitura. Deus vos abençoe e Maria vos proteja!
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O homem da Igreja ama a beleza da casa de Deus. A Igreja roubou seu coração. É sua pátria espiritual. É sua mãe e seus irmãos. Nada que lhe diga respeito deixa-lhe indiferente ou afastado. Ele se radica em seu solo; forma-se à sua imagem, integra-se na sua experiência; sente-se rico das suas riquezas. Tem consciência de participar por meio dela, e apenas por meio dela da estabilidade de Deus. Dela aprende como viver e como morrer. Não a julga, mas se deixa julgar por ela. Aceita com júbilo todos os sacrifícios por sua unidade.
O homem da Igreja ama o seu passado. Medita sobre sua história. Venera e explora sua tradição... Aceita o ensinamento do magistério como norma absoluta. Acredita simultaneamente que Deus nos revelou tudo, de uma vez por todas, no Filho e que, todavia, o pensamento divino adapta a cada época, na Igreja e mediante a Igreja, o entendimento do mistério de Cristo... E compreende, enfim, em qualquer circunstância, que não pode ser um membro ativo do corpo se não for antes de mais nada um membro submetido, dobrável e dócil à direção da cabeça. Não pretende, mesmo submetendo-se integralmente em tudo, trabalhar por conta própria à margem da comunidade. Não se reconheceria o direito de dizer-se homem da Igreja se não fosse acima de tudo e sempre, com absoluta sinceridade, seu filho... Ela não nos deu à luz para em seguida nos abandonar e deixar que cada um corra o seu risco: mas sim nos conserva e nos mantém unidos no seu seio materno. Nunca deixamos de viver do seu espírito, como as crianças encerradas no seio materno vivem da substância da mãe. Todo católico autêntico nutre para com ela um sentimento de terna piedade. Gosta de chamá-la com o título de “mãe”, título saído do coração dos seus primeiros filhos, como os textos da antiguidade cristã testemunham abundantemente. Todo católico verdadeiro proclama com São Cipriano e Santo Agostinho: Não pode ter Deus como pai quem não tenha a Igreja como mãe...
Seja, portanto, louvada essa grande Mãe, pelo mistério divino que nos comunica, introduzindo-nos nele através da dupla porta, constantemente aberta, da sua doutrina e da sua liturgia! Seja louvada pelo perdão que nos assegura! Seja louvada pelos focos de vida religiosa que suscita, que protege e cuja chama mantém viva! Seja louvada pelo universo exterior que nos desvela e em cuja exploração nos guia! Seja louvada pelo desejo e a esperança que cultiva em nós! E louvada seja inclusive por tudo aquilo que ela desmascara e dissipa nas nossas ilusões, para que a nossa adoração seja pura! Louvada seja essa grande Mãe!
Mãe casta, nos infunde e conserva em nós uma fé sempre íntegra, que nenhuma decadência humana, nenhum envelhecimento espiritual, por mais profundo que seja, pode manchar. Mãe fecunda, não cessa de nos dar novos irmãos por meio do Espírito Santo. Mãe universal, cuida igualmente de todos, dos pequenos como dos grandes, dos ignorantes como dos sábios, do humilde povo das paróquias como da grei eleita das almas consagradas. Mãe venerável, nos garante a herança dos séculos e tira do seu tesouro coisas antigas e novas. Mãe paciente, recomeça a cada dia sem se cansar a sua obra de lenta educação e reconstrói, um por um, os fios da unidade que os seus filhos continuam rompendo. Mãe atenta, nos protege contra o Inimigo, que ronda em nossa volta procurando nos desmembrar. Mãe amorosa, que não nos dobra sobre si mesma, mas nos lança ao encontro de Deus, que é todo amor...
Sê louvada, ó Mãe do belo amor, do temor salutar, da ciência divina e da santa esperança! Sem ti, nossos pensamentos permanecem esparsos e flutuantes: tu os ligas em um feixe robusto. Tu dissipas as trevas em que alguém treme, se desespera ou, mesquinhamente, retalha sob sua medida, o romance do infinito. Sem nunca nos desencorajares , nos proteges dos mitos enganadores, nos poupas o desencaminhamento e o desgosto de todas as igrejas feitas por mãos de homem. Tu nos salvas da ruína em presença de nosso Deus! Arca vivente, porta do Oriente; Espelho imaculado da atividade do Altíssimo! Tu, que és amada pelo Senhor do universo, iniciada em seus segredos e que nos instruis sobre aquilo que lhe agrada! Tu, cujo esplendor espiritual, nos piores momentos, não nos ofusca! Tu, graças a quem a nossa noite é banhada de luz! Tu, por quem todo dia o sacerdote sobe ao altar do Deus que renova a sua juventude! Sob a escuridão do teu manto terrestre, a glória do Líbano está em ti. Tu nos dás todo dia aquele que unicamente é a vida e a verdade! Por ti temos a esperança da vida. Tua recordação é mais doce que o mel e aquele que te escuta nunca conhecerá a confusão. Mãe santa, mãe única, mãe imaculada! Ó grande Mãe! Santa Igreja, verdadeira Eva, a única verdadeira Mãe dos viventes! (Meditation sur l’Eglise)