segunda-feira, 21 de maio de 2012

Caminho de conversão





Disponibilizo um excelente texto do padre e teólogo Réginald Garrigou-Lagrange, O. P., sobre a vida espiritual. O excerto foi retirado do livro 'As Três Vias e as Três Conversões' (4ª Edição. Editora Permanência. P. 46-48.), em que se trata sobre as três vias ou idades da vida espiritual, que tem seu cume na via unitiva, a via dos perfeitos, daqueles que gozam do início da vida eterna ainda aqui na Terra, como Santa Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena, e sobre as três conversões necessárias para chegar a cada uma. Desnecessário explicar que tal assunto é fundamental na vida de todo cristão, como um processo de análise da caminhada e de busca pela perfeita Caridade.

Em breve e rasa explanação, a primeira conversão é aquela pela qual a alma passa do estado de dissipação ou de indiferença ao estado de graça, levando à via purgativa, à luta contra os pecados, vícios e más inclinações, os quais, consciente ou inconscientemente, afastam do caminho de Deus e dEle mesmo. Já na segunda conversão, a alma passa do estado imperfeito à profunda resolução de daí em diante tender real e generosamente para a perfeição cristã, entrando na via iluminativa, na vida virtuosa, porém ainda necessitada de uma terceira conversão, uma verdadeira transformação da alma.

Tal doutrina não pode significar para nós apenas um conhecimento livresco e teórico, mas deve consistir em busca de uma vida inteira. Ouçamos, pois, a Cristo, no Sermão da Montanha:

“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; desse modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos. Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. (Mt 5, 43-48)”

Deus os abençoe e Maria os proteja!

"Santa Catarina mostra em seu Diálogo (caps. 60 e 63), que aquilo que se passou com os Apóstolos, nossos modelos formados diretamente por Nosso Senhor, de certo modo deve reproduzir-se também em nós. Antes, é preciso que se diga que se os Apóstolos tiveram necessidade de uma segunda conversão, com muito maior razão dela precisamos nós. A santa insiste particularmente sobre as imperfeições que tornam necessária esta segunda conversão, especialmente sobre o amor próprio. Nas almas imperfeitas, ele susbsiste em graus diversos, apesar do estado de graça, e é a fonte de um grande número de pecados veniais, de defeitos habituais,  que se tornam como os traços do caráter das pessoas e fazem necessária uma verdadeira purificação da alma, mesmo naqueles que, de certo modo,  já estiveram no Tabor ou que frequentemente participam do banquete eucarístico, como os Apóstolos na Ceia.

No capítulo 60 de seu Diálogo,  ela nos fala deste amor próprio, descrevendo o amor mercenário dos imperfeitos que, sem perceberem,  servem a Deus por interesse, pelo apego às consolações, quer temporais quer espirituais, e que ao serem delas privados choram lágrimas de ternura por eles mesmos.

Trata-se de mistura bem estranha mas, de fato, muito frequente em nós: a de um amor a Deus, que tem sua sinceridade, com um amor desordenado de nós mesmos. Não se pode negar que tal pessoa ama a Deus, com um amor de estima, mais do que a si mesma, sem o que não estaria em estado de graça e teria perdido a caridade, mas ela se ama a si mesma ainda de um modo desordenado.

(...)

'Entre aqueles que se tornaram meus servos de confiança, há os que me servem com fé, sem temor servil. Não é apenas o temor do castigo, é o amor que os liga ao meu serviço [como Pedro antes da Paixão]. Mas este amor não deixa de ser imperfeito, porque eles buscam a si mesmos [pelo menos em boa parte], é sua própria utilidade, sua própria satisfação, ou o prazer que encontram em Mim. A mesma imperfeição também se encontra no amor que eles tem ao próximo. Sabes o que demonstra a imperfeição deste amor? Já que são privados das consolações que encontravam em mim, este amor não lhes é suficiente e não pode mais sobreviver . Este amor definha e frequentemente vai esfriando cada vez mais, quando para exercitar as almas na virtude e arrancá-las da imperfeição, eu lhes retiro estas consolações espirituais e lhes envio lutas e contrariedades. Mas ajo assim somente para levá-las à perfeição, para ensiná-las a melhor se conhecer, para que tomem consciência de que não são nada e que por elas mesmas não possuem nenhuma graça. A adversidade deve levá-las a buscar refúgio em mim, a me reconhecer como seu benfeitor, a se apegarem a mim somente por uma verdadeira humildade...'

(...)

É importante, pois, superar o amor mercenário que às vezes continua subsistindo, ainda que ignorado. Neste mesmo capítulo 60 está dito:

'Era com este amor imperfeito que São Pedro amava o bom e doce Jesus, meu filho único, quando provava tão deliciosamente a doçura de sua intimidade [no Tabor]. Mas, apenas veio o tempo da tribulação, toda a sua coragem o abandonou. Não somente faltaram-lhe forças para sofrer com Ele, como, à primeira ameaça, o mais baixo dos temores venceu sua fidelidade e Pedro renegou a Cristo jurando nunca tê-lo conhecido.'

Santa Catarina mostra que a alma imperfeita, que ama o Senhor com um amor ainda mercenário, deve imitar o que fez Pedro depois da negação. Não é raro que a Providência, a qualquer momento, também nos permita incidir em alguma falta bem visível, para nos humilhar e obrigar-nos a entrar em nós mesmos. 

(...)

Catarina observa que a alma que se move apenas por um amor mercenário corre inúmeros perigos. 'São as almas, diz ela, que querem ir ao Pai sem passar por Jesus Crucificado e que se escandalizam da cruz, que lhes é dada para salvá-las'. (Cap. 75)"